Ambiente e Território
Carta Aberta: Em Defesa do Solo do Nosso País
Data
03
Janeiro
2025
Autor
Autor:
GEOTA
Exmos. Srs. e Sr.ª

Primeiro-Ministro, Dr. Luís Montenegro

Ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Dr. Manuel Castro Almeida

Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Eng. Miguel Pinto Luz

Ministra do Ambiente e Energia, Prof.ª Dr.ª Maria da Graça Carvalho

Ministro da Agricultura e Pescas, Eng. José Manuel Fernandes

Presidente da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, Dr.ª Luísa Salgueiro

19 de dezembro de 2024


Escrevemos-vos profundamente inquietos com a vossa recente decisão de permitir a construção em solos rústicos

Os solos rústicos são solos que não devem ser urbanizados. De acordo com  as suas características naturais são mais adequados para "aproveitamento agrícola, pecuário, florestal,  conservação, valorização e exploração de recursos naturais, recursos geológicos ou recursos energéticos, assim como  para serem usados como espaços naturais, culturais, turísticos, recreio e lazer ou à proteção de riscos".

Compreendemos os fortes constrangimentos e as dificuldades que muitas pessoas enfrentam e que limitam o direito de todos a habitação acessível. Mas cremos também que permitir a construção em solos rústicos vai criar mais problemas sem resolver o problema original da crise da habitação, que é acima de tudo um problema de mercado.

O facto de ser um problema de mercado é algo que vários especialistas já têm demonstrado publicamente, propondo outras soluções que não passam pela construção em solos rústicos. 

As 16 organizações de cariz ambiental abaixo-assinadas recordam assim os problemas de que os nossos solos já padecem, e que serão agravados com esta decisão:

  1. O nosso Planeta enfrenta vários desafios ambientais como as alterações climáticas, com elevados custos de vidas, impactos sociais, económicos e ambientais. Vários relatórios das Agências das Nações Unidas alertam também para a ameaça de extinção do solo.

  2. O solo é um recurso não renovável à escala humana pois para se formar apenas 1 cm de solo arável são necessários mais de 100 anos. Infelizmente, estima-se que mais de 52% dos solos agrícolas mundiais se encontrem degradados.(1)

  3. Os peritos das Nações Unidas prevêem que o atual ritmo de degradação dos solos apenas permita mais 50 anos de colheitas. Nos  próximos 15 a 20 anos, a produção mundial de alimentos pode sofrer uma quebra de 40%, para uma população mundial que se estima atingir os 9 mil milhões de habitantes(2), resultando assim numa grave crise alimentar.

  4. O solo constitui também um reservatório de carbono orgânico com uma capacidade cerca de três vezes superior à da vegetação terrestre. A atividade humana tem vindo a diminuir as reservas de carbono orgânico no solo, por isso é urgente reverter este processo adotando práticas de gestão do solo, que permitam a mitigação e a adaptação dos sistemas agrícolas às alterações climáticas.(3)

  5. A Comissão Europeia estima que o efeito da perda de funcionalidade do solo agrícola equivale a um custo de 1,25 mil milhões de euros ao ano(4). Por isso foi recentemente aprovada a Lei do Restauro da Natureza e a proposta de uma Diretiva Europeia de Monitorização do Solo(5) para impedir a sua impermeabilização e destruição, e o "Strategic Dialog on The Future of EU Agriculture"(6) concluiu que a Comissão Europeia deve estabelecer uma meta juridicamente vinculativa de "zero tomada de terra até 2050".

  6. Em Portugal, estima-se que mais de 54% dos terrenos agrícolas se encontrem degradados, com um nível baixo de matéria orgânica (1-1,2%). As zonas do interior, de norte a sul do país, são as zonas de maior risco de desertificação (não confundir com despovoamento), constituindo 58% do território nacional.(7)

  7. Para fins de produção agro-alimentar, apenas 2 a 3% do solo está classificado como tendo elevado potencial agrícola, e apenas 20 a 23% de qualidade razoável. Os solos de elevada qualidade encontram-se na sua maior parte integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN). 

  8. A nova lei que pretende autorizar a construção em solos rústicos e que abre também a possibilidade de construção em Áreas de Conservação, desde que esses solos não tenham habitats prioritários, contraria a Convenção da Diversidade Biológica e a obrigação que Portugal tem de proteger 30% do seu território até 2030, bem como a Directiva Habitats e a Convenção de Berna.

  9. A alteração do uso do solo rústico para construção de habitação vai destruir solos de qualidade, ou de menor qualidade que deveriam ser recuperados, e vai acarretar a construção de outras infra-estruturas complementares e necessárias às habitações, nomeadamente rede viária, rede de saneamento e abastecimento público e serviços complementares.

Em suma, deve ser promovida a recuperação dos solos rústicos degradados, para manterem a funcionalidade agrícola e contribuírem para a segurança alimentar no nosso país e para a manutenção de habitats e da biodiversidade, e não deve ser permitida a sua destruição, com construção e infra-estruturas complementares.

Partilhamos ainda brevemente algum contexto sobre a crise da habitação que explica porque é que a construção em solos rústicos não contribui para a sua resolução:

  1. É sobejamente conhecido que em Portugal não faltam habitações construídas (nem solos urbanizáveis), a questão é que muitas delas não estão disponíveis no mercado. Permitir construção nos solos rústicos não só não resolve o problema de mercado subjacente à crise da habitação, como também irá demorar anos a disponibilizar habitação e infraestruturas complementares, sendo que aquela será criada apenas marginalmente onde é precisa.

  2. A crise na habitação verifica-se em municípios com baixa disponibilidade de terrenos rústicos, já fortemente urbanizados, pelo que disponibilizar estes terrenos para urbanização a nível nacional não irá resolver o problema da habitação quando este é geograficamente circunscrito. 

  3. Não estão esgotadas as oportunidades de reabilitação, reconstrução e renovação de infraestruturas degradadas ou desocupadas em espaços urbanos, que devem ser privilegiadas, a par de incentivos fiscais claros para disponibilização da habitação existente no mercado.

Assim, consideramos que o governo, na urgência de tentar resolver o problema da falta de habitação acessível em Portugal, está prestes a tomar uma decisão que pode vir a ser catastrófica: irá aumentar as áreas de terrenos/solos já degradadas e sem grande potencial agrícola ou florestal, ameaçando a salvaguarda da biodiversidade e da agricultura, e pondo em causa um património natural essencial ao bem-estar de todos e tão apreciado por todos os turistas que nos visitam. 

Pelos motivos expostos, os signatários desta carta aberta vêm pelo presente meio manifestar a sua forte e veemente preocupação face à pretensão do governo de alterar o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), solicitando por isso que a mesma não avance nos termos propostos.

Solicitam ainda que os representantes dos abaixo-assinados sejam também recebidos em audiência pelo Sr. Primeiro-Ministro, à semelhança da Associação Nacional de Municípios Portugueses e outras entidades, para justificarem em maior detalhe porque permitir a construção em solos rústicos é um duplo erro grave, pois não só não resolve o problema da habitação como ainda irá gerar mais problemas nos já tão fragilizados solos do nosso país.

Finalmente, apelamos ainda a que, para além das audiências privadas que o Governo está a realizar, se realize também uma alargada e profunda discussão pública centrada na Assembleia da República, com a participação das várias entidades conhecedoras do assunto e de especialistas em gestão de território, agronomia, biologia, ecologia e também das diversas Organizações Não Governamentais de Ambiente. Esta discussão pública deve ser ainda complementada com uma consulta pública da proposta de decreto-lei, a realizar através da plataforma ConsultaLex, gerida pela Presidência do Conselho de Ministros. 

As 16 organizações signatárias:

A ROCHA - Associação Cristã de Estudos e Defesa do Ambiente

Acréscimo - Associação de Promoção ao Investimento Florestal

ACSA - Alimentar Cidades Sustentáveis Associação 

ADPM - Associação de Defesa do Património de Mértola

AEPGA - Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino

ALDEIA - Acção, Liberdade, Desenvolvimento, Educação, Investigação, Ambiente

Almargem - Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve

ANP|WWF - Associação Natureza Portugal, em associação com a WWF 

FAPAS - Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade

GEOTA - Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente

LPN - Liga para a Protecção da Natureza

Palombar - Conservação da Natureza e do Património Rural

Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza

SPEA - Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves

SPECO - Sociedade Portuguesa de Ecologia

Zero - Associação Sistema Terrestre Sustentável


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